Florença, maio 2022

Às vezes dormir era difícil. O fuso, o pôr-do-sol tardio, as tardes preguiçosas, todo o dolce far niente daqueles dias faziam com que acordássemos mais tarde do que de costume e entrássemos madrugada a dentro antes de fechar os olhos de novo. A. gostava de contar histórias. Tirava coisas improváveis da cabeça, espontaneamente, e murmurava palavras até o sono bater. Depois de um tempo e de muitas histórias ouvidas, eu comecei a achar que aqueles enredos imaginários eram sempre uma metáfora - uma metáfora para a vida, para nós, para nossos medos e inseguranças.
Eu escrevi sobre aquelas histórias com o respeito de quem não é a autora delas. Pelo contrário, eu me sentia duplamente personagem: personagem ouvinte, como uma criança sendo posta para dormir enquanto os olhos brigam para se manter em aberto e prolongar um pouco mais o dia, e personagem da história em si. Eu estava ouvindo uma história sobre mim. Sobre nós. Sobre as pessoas ao nosso redor. E era sempre de maneira velada, doía quase como uma indireta. Eu sabia que aquelas histórias eram a forma de A. dizer coisas que jamais falaria. Àquele ponto, eu já conhecia seus medos e suas dores, e aquelas histórias antes de dormir se tornaram especiais à sua maneira porque eu sabia que era o seu jeito de colocar para fora aquilo que doía no peito.
As histórias eram sempre simples, quase bobas para o ouvinte desatento e fora de contexto. Mas quando eu ouvi O Peixe chamado Hungry (eu ia traduzir o nome, mas "Com Fome" soaria estranho, então mantive o nome 'original'), eu chorei. Naquele momento, eu chorava por quase tudo, pois quase todas as coisas eram como lembretes de que eu deixaria a cidade em breve, mas naquela noite eu chorei como ainda não tinha chorado antes.
O Peixe chamado Hungry foi o primeiro momento em que eu senti dor, uma dor física, quase, de quem precisa partir para poder voltar. Naquela noite, já havíamos compartilhado nossos sonhos e vontades o suficiente para saber que dificilmente nossas vidas atravessariam o mesmo caminho novamente. Quando eu retornasse para Florença, aquelas pessoas não estariam mais ali, A. não estaria mais ali para me contar histórias, e todos eles seriam como fantasmas naquelas ruas onde um dia todos habitamos. Como sempre gosto de dizer, escrever sobre tudo que vivi é a minha maneira de trazer esses fantasmas de volta à vida, ainda que um pouco, então é aqui que transporto vocês para aquela noite no quarto com o afresco no teto, quando uma história infantil me ensinou que algumas vezes nossos sonhos nos levam para longe e nem sempre incluem quem a gente ama. Mas talvez amor seja isso - desejar que os sonhos do outro se realizem ainda que a gente não faça parte deles.

Florença, maio de 2022
Eu estava deitada, com a cabeça repousando no seu peito. Já passava da hora de dormir, e havia um abajur aceso ao lado da cama que deixava uma meia luz amarelada iluminar parte do quarto. Era tarde, talvez já passasse das duas da manhã, e embora ainda acordados estávamos em silêncio, apesar de que eu poderia jurar que conseguia ouvir seus pensamentos. Até que A. interrompeu a própria mudez:
- Posso te contar uma história?
- Sim, claro.
- Só com minha imaginação, não tenho nada em mente.
- Okay
- Okay, então…
Era uma vez, uma menina e um menino. Eles eram muito diferentes. A menina era corajosa e destemida, e o menino era um pouco tímido. Um dia a menina o convidou para um passeio de barco, mas o menino tinha medo da água. "Você pode confiar em mim, o barco é seguro e as águas são rasas", ela disse. Isso fez com que ele se sentisse melhor, e então decidiu juntar-se a ela. Enquanto estavam no barco, o menino estava ficando mais à vontade perto dela, então decidiu perguntar o que ela gostaria de ser quando crescesse. "Uma astronauta!", ela disse. "Uma astronauta?", ele replicou, incrédulo. "Sim, astronauta. Eu gostaria de ir até a lua e ver o mundo lá de cima". "Você não tem medo de altura?", ele questionou. "Não! Eu não tenho medo de nada!", ela respondeu. A resposta fez com que ele desejasse ser um pouco mais como ela. Ele queria ter a coragem dela. Eles continuaram navegando até que decidiram pescar um peixe, então eles jogaram a linha com o anzol. Estava demorando, e o menino estava ficando impaciente. "Quanto tempo isso vai levar?", ele perguntou. "Eu não sei", ela respondeu, "Eu fiz o que estava ao meu alcance, eu lancei a linha, agora precisamos esperar. Se formos pacientes o suficiente, podemos pegar um ótimo peixe, e tudo que precisamos fazer foi lançar a linha primeiro". O menino parou por um instante e pensou que a vida era mais ou menos como pescar - você dá o primeiro passo, lança a linha, e depois espera para ver como o mundo reage sobre isso. Eles então sentiram a linha puxar. Eles tinham um peixe! "Como devemos chamá-lo?', ela perguntou. "Não sei. Talvez devêssemos chamá-lo de Hungry, por causa da boca aberta. Um peixe chamado Hungry". Ela se divertiu. "Hungry. É um nome engraçado. Eu gosto". Ele gostava da forma como ela apoiava as ideias mais bobas dele, sem julgamentos. Então, eles decidiram devolver Hungry para a água e retornar, já estava escurecendo e ficando frio. O menino estava feliz por ter ido ao passeio com ela, e se sentiu feliz consigo mesmo por não ter deixado que seu medo de água o impedisse de fazer isso. Ao chegar perto do píer, era hora de se despedir. "Obrigada pelo passeio", ele disse. "Sem problemas!", ela respondeu. Enquanto ele se distanciava, ele decidiu voltar. "Espero que você se torne uma astronauta!". Ela pareceu confusa. "Quero dizer… espero que seus sonhos se realizem".
Até semana que vem,
S.
-
Gëzuar ditëlindjen, A. Espero que seus sonhos se realizem.