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"Eu sabia que havia algo para mim ali, algo muito pessoal, relacionado à descoberta de quem eu sou, que eu precisava viver e entender."

Os textos que você encontra aqui foram originalmente publicados na minha newsletter semanal, que é enviada todas as segundas às 11h, horário de Brasília. Neste mesmo dia e hora, atualizo esta página com o texto enviado na semana anterior. Clique aqui para assinar a news e não perder as atualizações!

Florença, abril 2022



Frequentemente recebo no meu Instagram mensagens me perguntando como foi e como tem sido o processo de deixar tudo para trás e ir para a Itália. A verdade é que eu não deixei tudo para trás. A gente nunca deixa, pra ser bem sincera.

Antes de embarcar, em fevereiro, eu vendi praticamente todas as minhas coisas pessoais, de móveis a roupas, e tentei me desfazer de quase todas as amarras físicas. Objetos podem se tornar amarras sim, quando pensamos que eles demandam nosso cuidado, atenção, local para armazenagem, além da nossa energia. Fiz isso também por motivos financeiros, porque além de ter me ajudado a levantar uma grana para a viagem, esse processo também eliminou despesas como ter que pagar o aluguel do meu apartamento. Mas acho que as pessoas se enganam a ver tudo isso apenas pelo Instagram: ao contrário do que parece, não foi um movimento fácil nem rápido - na verdade levei dois anos para fazer isso, foram diversos bota-fora e muitas mudanças e memórias reviradas. Não arranquei nada feito band-aid.

Apesar disso, mantive o escritório da Tout intacto, pois a empresa continuaria funcionando na minha ausência, afinal de contas eu estava indo para um período de "teste". Eu queria saber como eu me sentiria morando lá, longe de tudo, e eu estava indo livre, mas não tanto. Tentei deixar o mínimo de segurança para mim mesma enquanto estivesse fora, e gostava de pensar que eu teria algo para onde voltar caso as coisas não dessem tão certo por lá. Como eu disse, não deixei tudo para trás. Nem vou entrar no mérito afetivo aqui porque acho que é um pouco óbvio: as pessoas que a gente ama ficam longe sim, e a saudade é algo com que a gente vai aprendendo a lidar.

De uma maneira ou de outra, todo imigrante (seja por um período curto ou longo) passa pelas mesmas coisas, com maior ou menor intensidade. No exterior, a gente se vê diante de nós mesmos, e nós mesmos apenas, com muito pouco no qual a gente possa se agarrar. É um desafio diário de resiliência e autoconhecimento. Acho que ter me desfeito das minhas coisas aos poucos me ajudou a aceitar e a entender melhor meus processos, como se eu fosse me adaptando em doses homeopáticas a viver sem tudo aquilo que eu conhecia. Nada foi da noite pro dia. Mas como eu disse, esse foi o meu processo e cada um vive isso de uma forma diferente.


Florença, abril de 2022

Eu estava sentada na sala do apartamento onde morava numa noite qualquer. O meu quarto era o último no final do corredor, e por ser um apartamento grande o sinal de internet nem sempre era bom por lá, o que me levava à mesa da sala para trabalhar. Era um apartamento gelado, com pouca incidência de sol não importava a estação, e me lembro de estar usando moletom e meias, com as pernas para cima da cadeira e sentada sobre elas pois a mesa era alta e me causava dor nos ombros ao digitar. Não era o ideal, mas era onde eu trabalhava quando a Oblate estava fechada.

Eu não me lembro exatamente no que eu estava trabalhando, até que uma das minhas roommates notou minha presença ali após passar pela cozinha para tomar um chá. Acho que de todas as pessoas que passaram por aquele apartamento ela era quem mais usava a cozinha, sempre fazendo algum prato típico e separando uma porção para quem quisesse experimentar. Ela tinha cerca de 40 anos e estava ali fazendo um mestrado em arquitetura, e gostava de conversar com quem estivesse disposto a ouvir. Era uma pessoa muito comunicativa, ainda que seu sotaque às vezes atrapalhasse a compreensão do que ela dizia.

Eu gostava muito de conversar com ela, porque além da diferença de gerações havia também uma questão cultural forte que pautava muito suas opiniões. E isso, para mim, é o que há de mais precioso quando se viaja ao exterior - sair da nossa bolha, conhecer, entender e respeitar aquilo que é diferente. Naquele dia, eu tinha acabado de decidir que ficaria mais um mês na cidade e estava animada sobre aquilo, e isso acabou virando o assunto da conversa. Foi nesse diálogo com minha roommate que ficou claro para mim como a noção de pertencer e se adaptar pode ser relativo. Eu estava tão feliz e me sentia tão em casa ali que decidi ficar um mês a mais, enquanto ela, que ficaria ali por quase um ano, deixava transparecer que não via a hora de voltar para casa.

Como eu sabia que qualquer conversa com ela me provocava algum tipo de reflexão, aproveitei que estava com o computador e fui digitando enquanto ela falava. Talvez, naquele momento, tenha parecido muito mal educado da minha parte, mas não queria perder nenhum detalhe para que pudesse escrever sobre isso depois. Mal de escritor, eu acho, mas ainda bem que o fiz:


"Eu sempre morei em cidades agitadas, e estou acostumada a fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Estou aqui há três meses e sinto falta de ver as coisas acontecendo o tempo todo. Sinto como se, aqui, eu pudesse ver o tempo passando bem devagar. E quando você está nos 40, é difícil conhecer novas pessoas, fazer novos amigos, estou sozinha aqui, tenho uma família na Índia, uma filha, sinto que construí uma concha para mim mesma e tem sido difícil sair um pouco dela. É diferente quando se está nos 20 ou 30 anos como você. Você realmente deveria aproveitar esse período que você está vivendo, porque ele não vai voltar. Mas talvez isso também seja apenas a minha construção das coisas, talvez eu tenha colocado tantas camadas em mim mesma dizendo que eu estou velha para fazer certas coisas, e essa cidade e essa experiência tem me forçado a descascá-las um pouco."

Até semana que vem,

S.

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Todas as histórias que narro sobre Florença aconteceram de verdade, e por isso me deixo no direito de não expor o nome de nenhuma pessoa citada nelas. De certa forma, acho bonita essa contradição entre o expor e não-expor: enquanto minhas narrativas tentam levar vocês aos detalhes da minha vida na Itália, deixo a cargo da imaginação de quem lê desenhar e pintar os rostos daquele que cruzaram meu caminho. Enquanto isso, ilustro o cenário: nas imagens de hoje, minha casa, minha janela com vista para a rua e o quarto onde vivi essas aventuras todas. <3

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