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"Eu sabia que havia algo para mim ali, algo muito pessoal, relacionado à descoberta de quem eu sou, que eu precisava viver e entender."

Os textos que você encontra aqui foram originalmente publicados na minha newsletter semanal, que é enviada todas as segundas às 11h, horário de Brasília. Neste mesmo dia e hora, atualizo esta página com o texto enviado na semana anterior. Clique aqui para assinar a news e não perder as atualizações!

Brasília, janeiro 1993



Até a última vez que eu vi, a casa era azul. Na verdade, não sei bem se construí essa memória ou se acabei associando a alguma outra coisa, mas a casa onde eu nasci, no meu imaginário, uma vez fora pintada de azul. Eu já não morava mais lá e não sei se em algum momento dirigi por aquelas ruas ao visitar Brasília, ou se alguém passou por lá e me contou, e acho que o simples fato de eu sequer ter certeza sobre a cor da minha casa só reforça a conexão que eu tenho com minha cidade natal: praticamente nenhuma.

Nasci e morei em Brasília até os meus três anos de idade. E nasci lá quase que por acaso mesmo, porque meu pai estava trabalhando lá na época. Não tenho nenhum parente na capital federal, muito embora eu tenha voltado na cidade praticamente uma vez ao ano durante minha vida adulta para visitar amigos que fiz na adolescência. Por acaso também, já que não fiz nenhum desses amigos em Brasília e eles foram morar lá... por acaso. Ou porque o destino e as Forças Armadas quiseram.

Minha família é mineira. Meus pais foram vizinhos em parte da infância e adolescência até que se casaram super jovens e seguiram a peregrinação que a vida militar proporciona. Até hoje minhas avós moram na mesma rua, a pouquíssimos metros de distância uma da outra - imaginem uma cidade pacata num interior igualmente pacato, dessas em que os vizinhos vão para a calçada no final da tarde, todo mundo se conhece e as novas gerações são conhecidas pelos nomes dos pais. Lá, sou filha do Zezé e da Janaina. Se falar Sthefany, ninguém sabe quem é.

Esse endereço - essa rua, exatamente - foi o único que não mudou em toda a minha vida. Trago suas coordenadas tatuadas no calcanhar esquerdo porque é a única referência de casa e infância que eu tenho. O que é engraçado, de certa forma, porque também não cresci ali, as memórias não são tão extensas, não vi boa parte dos meus primos nascerem e alguns deles, numa parte mais distante da família, eu só sei quem são porque vi foto nas redes sociais. Mas casa de vó é casa de vó, é a referência que eu tenho e por isso me agarro nela.


Eu sou a mais velha de três irmãos e cada um de nós nasceu em uma cidade diferente. Nós sempre fomos a parte da família que morou longe, que perdia comemorações importantes e reuniões familiares, e quando você cresce com isso você simplesmente... se acostuma. Exceto no Natal, para mim, que é quando o desejo de estar perto de todos se fortalece e geralmente me entristece. É uma celebração que honestamente eu não gosto, e que geralmente envolve FaceTime e algum choro.

Nós viemos morar em Recife há muitos anos, e embora eu resida aqui a maior parte da minha vida, a conexão com a cidade não existe. Já tive 7 (sete!) endereços diferentes na cidade. Eu não me sinto local, meu sotaque (ou falta dele) me denuncia quase sempre, e a falta de identificação com a cidade vai desde pequenas coisas como hábitos alimentares a festejos tradicionais. Não cresci frequentando o interior para o São João, coentro praticamente não entra em casa, mas abro exceção para o Carnaval, que aprendi a amar (com força) já depois de adulta, e para o cuscuz - ai sim bato no peito pra dizer que amo, com queijo coalho ou carne de sol, então, nem se fala. Não se pode confiar em quem não gosta de cuscuz. Mas estou dizendo isso porque é nesses pequenos detalhes que minha vida sem raízes fincadas se desenrola, que meu desejo de ver e estar no mundo foi construído e que hoje, de certa forma, me permitem experimentar estar do outro lado do oceano com um pouco menos de pesar.


Quando a Itália entrou na minha vida, em 2018, o sentimento de identificação e o desejo de permanecer-ser foi maior do que em todos esses lugares que eu citei (e os que não citei também - já morei no Rio de Janeiro, em Salvador, meu pai hoje mora do outro lado do país, no Mato Grosso do Sul). Nos primeiros meses que morei em Florença, eu olhava para todos aqueles turistas e sentia algo diferente ao pensar que estavam todos de passagem enquanto eu... eu morava ali.

Morar no exterior exige muitas renúncias, e a news de hoje é apenas para contextualizar a minha vida enquanto cidadã de algum lugar (ou de lugar algum). Pergunte para um filho de militar de onde ele é e provavelmente ele vai te dizer que é do mundo. Eu, que agora estou nesse momento transitório, me sinto mais do mundo do que nunca - e embora minha tatuagem me indique sempre onde minha família está, boa parte do meu coração está, há muito tempo, em outro lugar.

Até semana que vem,

Sthe

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